Produção Científica - Artigos e Capítulos

ESCUTA DE GÊNERO Sofrimento ético-político e a violência contra a mulher

ESCUTA DE GÊNERO
Sofrimento ético-político e a violência contra a mulher

Rosane Lorena Granzotto

Nos interessa discutir neste artigo a temática da violência contra a mulher principalmente no que diz respeito à escuta clínica deste sofrimento. Numa realidade em que acontecem 13 mortes violentas de mulheres e 135 estupros registrados por dia (pesquisas divulgadas em 2018), cabe a cada um de nós, seja em instâncias mais amplas de militância ou em nossos espaços profissionais mais rotineiros, exercer um lugar político de ampliação da consciência de gênero das mulheres brasileiras.
Mais além do nosso lugar de cidadãs, quero refletir sobre o lugar de escuta destas mulheres. Esta escuta é diferenciada por ser uma escuta engajada e politizada que leva em conta a trama cultural e histórica de uma sociedade majoritariamente machista que condiciona a experiência de ser mulher à sofrimentos cujas causas são invariavelmente violências naturalizadas e invisibilizadas. É uma escuta que parte de um lugar de fala com compromisso social, ético e político. É um dar ouvidos à sujeitos oprimidos num ato de restituição de humanidades negadas ouvindo os aspectos psíquicos a partir de uma realidade vivida. Quando se escuta o sofrimento de uma mulher por ser mulher é importante considerar que estamos diante da forma mais antiga, arraigada e naturalizada de discriminação e exclusão criada pela raça humana, a misoginia.
Quanto à violência, esta destrói a liberdade; trata-se de um ato que priva sua vítima de toda e qualquer possibilidade de ação, reduzindo seu espaço a zero, aniquilando-a. A pior delas é o feminicídio seguida das diferentes violências, física, sexual, psicológica, etc. Porém há uma violência que causa um sofrimento profundo, trata-se da violência invisibilizada e naturalizada, aquela que se transformou em hábito socialmente legitimado, tal como as cenas de ciúme, o confinamento à esfera doméstica, as piadas, xingamentos, etc. Estes hábitos se constituem a partir das estruturas implícitas no sistema social e fazem com que os estados de injustiça e violência permaneçam; estabelecem relações de poder desiguais, sem se revelarem como tais. Em virtude de sua invisibilidade, as vítimas da violência não têm consciência direta do contexto de domínio a que estão submetidas. E isso é que caracteriza sua eficiência. Por ser hábito, são repetidos sem questionamento como atos usuais, costumeiros, fazendo avançar as relações de dominação, solidificando-as de forma muito efetiva, parecendo quase como natureza, como um “é assim mesmo”, gerando formas sutis de coerção, que conservam a vigência das relações de dominação e de exploração (Han, 2017). Tal processo é dificilmente percebido como construto social e moral (costumes, hábitos patriarcais e ciência androcêntrica) e em todas estas situações as mulheres pensam que o problema está com elas. Exemplo disto é o medo do estupro, a construção da ideia de que o corpo da mulher é violável. Por que o risco é entendido como produzido por ela? Pior que isso, provavelmente esta mulher será investigada à respeito de quais os mecanismos psíquicos que produziram tal exposição, etc.
A ciência androcêntrica merece um capítulo à parte. Por que as mulheres são mais “loucas” que os homens? Então vejamos, quando se fala de loucura são homens falando das “loucas”, criando diagnósticos, teorias, etc. Este discurso repetitivo sobre mulheres loucas se naturaliza e passamos a achar natural a relação entre mulheres e loucura. Afinal mulheres são mais instáveis, sujeitas às alterações hormonais, emotivas, choronas, histéricas e por aí vai. Se considerarmos o diagnóstico psiquiátrico percebemos nitidamente que não há neutralidade: o nível de tolerância é muito mais baixo para comportamentos mais sexualizados e agressivos dentre as mulheres e são compreendidos como sintomas de uma patologia. Sem falar na TPM, atualmente patologizada pela psiquiatria e usada invariavelmente pelos homens como forma de desqualificar falas e manifestações das mulheres.
Mas, e quando estas mulheres nos procuram para falar de seu sofrimento? Como chegam? O que temos diagnosticado e tratado? Grande parte deste sofrimento aparece como depressão e ansiedade. Mas quando escutamos essas mulheres encontramos um nível de violência muito grande, que muitas vezes elas nem sequer percebem. A partir deste olhar, aquele que considera as questões de gênero, passamos a fazer uma escuta completamente diferente dentro da clínica. A consequência disto é que retiramos a mulher do lugar de deprimidas, histéricas ou coniventes, e a ajudamos a encontrar o desejo de mudar sua condição.
Esta escuta quebra o que já é usual no tratamento do sofrimento das mulheres. Ou elas são psiquiatrizadas, quando se abafa com medicação algo que vem dizer alguma coisa, algo que precisa ser acolhido e levar a uma transformação, ou são psicologizadas, quando se trabalha o sofrimento de gênero como uma questão individual e interna, privatizando a dor e o sofrimento. Tais condutas despolitizam a atuação clínica e impossibilitam a articulação entre o cultural, o social, o político e o psíquico. Se nós psicólogas(os), não temos uma crítica de gênero, podemos cometer uma nova forma de violência, tanto teórica quanto interventiva. Ao legitimar a privatização dos afetos e reduzir o entendimento da situação de violência em que estas mulheres se encontram a apenas uma questão psicológica, a tornamos ainda mais vulneráveis ao sistema de dominação.
Se abre aqui uma nova possibilidade clínica, a Clínica do Sofrimento Ético-político, pois, pensar esse sofrimento pelo viés de gênero é politizar esse sofrimento, é resgatar a experiência como uma vivência intersubjetiva partilhada entre mulheres, sociedade e cultura. Isto significa entender aquele sofrimento não como patologia, mas como uma resposta possível, ajustamento de inclusão, pedido de socorro, dentro desta cultura patriarcal hegemônica que estrutura o pensamento, produz sintomas e mantém as mulheres em situação de violência. Nesta clínica a atuação consiste principalmente em fornecer apoio à resistência à violência, na medida em que, trazendo à compreensão as raízes políticas do sofrimento, questiona e desestabiliza as normas massificadas, podendo assim, minimizar culpas enraizadas na ideia de família, maternidade e todos os demais traços relacionados à produção de feminilidade, na qual ocorrem com frequência as violências, de vários níveis contra as mulheres.
Atuar dentro destes princípios nos leva a refletir sobre a clínica como um projeto político. Começamos então nos questionando o que entendemos por política. No campo da ciência por exemplo, podemos dizer que a ciência é um projeto político, pois se trata do exercício do poder pelo saber, um saber que se exerce sobre os corpos, enfermos, rebeldes, descrentes, ignorantes, etc. O saber pode ser uma teoria, um remédio, uma técnica ou um dispositivo de controle biopolítico, por exemplo, os dispositivos midiáticos. Assim se exerce o controle sobre o corpo, sobre os afetos, sobre as enfermidades.
E a clínica que fazemos, também é um projeto de exercício de poder? Sim, porém é necessário esclarecer o que entendemos por poder. Para nós, clínicos gestálticos, o poder é o exercício do “eu posso”, é se lançar para as possibilidades abertas em cada agora vivido. O poder corresponde às nossas possibilidades criativas, toda ação por cujo meio procuramos reinventar nossa realidade junto a uma possibilidade que visamos como um horizonte futuro. Neste sentido, quando fazemos uma clínica política autorizamos um outrem no outro corpo, um desejo.
Nas relações de campo, sob certas condições, estabelece-se um conflito de poder entre o desejo do outro social traduzido nos valores, crenças, papéis, instituições, etc. e os nossos projetos políticos ou desejos. Frente a este conflito podemos nos posicionar nos submetendo ao desejo do outro, aniquilando este outro, ou escolhendo uma terceira via, a via da banalização. Qualquer uma das alternativas criam vulnerabilidades. A submissão aos dispositivos de poder é o que mais observamos, talvez porque esteja muito arraigada aos processos disciplinadores e educacionais. Quando estas demandas se tornam excessivas, não conseguimos atender às expectativas, sejam elas de produtividade, consumo, disciplina, etc. Porém se nos rebelamos, somos considerados marginais, perigosos. Só nos resta submeter-nos, e quando isso acontece nosso corpo não aguenta, e então deprimimos, fazemos pânicos, fobias e até psicotizamos. As depressões, fobias, pânicos e inclusive as rebeldias são formas alternativas de construção da subjetividade. Eis porque a Foucault interessava escutar presos, loucos... Neste lugar de aparente fracasso nós construímos na verdade uma forma de resistência.
Numa clínica política, o poder se traduz em possibilidades criativas de enfrentamento. Se exerce por meio da gratuidade, do não-saber ou saber perder, pois tenho que perder o poder para o outro criar. O político aqui é a autorização ao outrem, ao estranho: o outro pode aparecer que eu acolho (não vou enquadrar, prender, denunciar, mandar para algum lugar, etc). A função política do terapeuta diante do outro é a de emancipar, dar lugar a uma autorização de si, empoderar.
E é lamentável como muitas vezes as práticas clínicas servem de agentes de cristalização da cultura de dominação. O trabalho clínico com as vulnerabilidades políticas deve poder ir muito além da mera aplicação de ficções metapsicológicas aos conflitos descritos pelos consulentes. A intervenção clínica jamais pode ignorar o papel dos demandantes, o papel dos dispositivos de poder veiculados pela mídia, a astúcia do outro capitalista em nos fazer exigir, de nós mesmos, que sejamos bem sucedidos. É um tipo de clínica cuja atuação consiste principalmente em fornecer apoio à resistência à violência, à submissão, à exclusão, à discriminação, na medida em que, trazendo à compreensão as raízes políticas do sofrimento, questiona e desestabiliza as normas massificadas, como diagnósticos estruturados e centrados no sujeito. É a clínica que se manifesta como forma de produção de uma diversidade, de uma diferença.
Nesta clínica estão incluídos muitas formas de sofrimento, todas elas desencadeadas nas relações sociais, como os assédios, o bulling, as crises reativas (depressão e pânico), o burnout, as violências domésticas e urbanas, todos os casos de exclusão por diferenças raciais, de gênero e de classe, etc. Estamos discutindo aqui apenas o sofrimento de gênero, e dentro dele o sofrimento de gênero relativo ao fato de ser mulher. Como já dissemos acima a misoginia é o mais antigo dos preconceitos, sempre reforçado pelos contextos culturais de cada época. A partir do século XVIII as mulheres foram colocadas em lugares desempoderados, de falta de privilégios, de desprestigio. De um século para cá foram colocadas em um lugar de objetivação sexual. Isso está presente nas propagandas, no assovio na rua, na piadas. As próprias mulheres acabam introjetando esse tipo de representação e se tratam de forma objetificante. É a forma como elas se avaliam a partir de um olhar que as objetifica. E essa ainda é a realidade que vivemos hoje.
A partir do momento que incluímos a escuta de gênero em nossa prática clínica, auxiliamos as mulheres a identificarem a violência a qual estão submetidas. Quando conseguem nomear esse tipo de violência, elas percebem que é um problema social, algo que é construído e não o seu destino, um problema seu ou algo que elas provoquem, deixando assim de se culparem. Esta percepção leva também ao empoderamento destas mulheres, que podem construir a partir daí novas formas de enfrentamento, se instrumentalizando para conseguir se proteger e se emancipar, podendo dizer “Eu não quero mais esse lugar”. Esta é uma prática clínica politizada, que as acompanha na decisão de não aceitar se submeter às agressões, de não as ocultarem, mas as tornarem públicas, recorrendo às instituições sociais. Isso se dá em um encontro terapêutico que constitua subjetividades políticas capazes de articular os aspectos socioculturais e os aspectos psicológicos implicados na prática da violência.
É importante que o processo se dê em grupo para deslocar a centralidade da revelação individual do sofrimento para o compartilhamento das experiências, rompendo com a privatização das emoções e propondo a ressignificação das experiências a partir de um lugar politizado e de interação.
Chegamos assim à consciência de gênero, a percepção do lugar onde a mulher é colocada e desenvolvendo um novo lugar, um lugar político e social em que elas conseguem perceber as opressões, lidar com elas e a partir dessa percepção começar seu processo de empoderamento. No momento em que as mulheres percebem e desenvolvem essa consciência de gênero, elas próprias vão pontuando isso, pois aquilo que era invisibilizado e naturalizado passa a ser visível e passível de mudança.

Referências
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