Produção Científica - Artigos e Capítulos

Leitura gestáltica e intervenção nos ajustamentos psicóticos

Leitura gestáltica e intervenção nos ajustamentos psicóticos

Granzotto, R.L.; Müller, M.J.


Abstract:
O texto que ora propomos não é um artigo científico. Ele tem como base nossa experiência clínica de mais de três anos em acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente e se destina a apresentar reflexões iniciais sobre uma possível leitura dos ajustamentos psicóticos à luz da teoria do self e de suas funções fenomenológicas apresentados por Perls, Hefferline e Goodman na obra Gestalt Therapy (1951). Conforme tal obra, a psicose é um tipo de ajustamento criativo em que a função de ego opera em proveito da suplência do fundo temporal de vivências que, espontaneamente, a função de id ou não retém ou não pode articular como base sensível para os processos de contato. O trabalho de intervenção gestáltica que estabelecemos procurou assegurar, aos pacientes terapeuticamente acompanhados, suporte para a constituição de laços sociais necessários às elaborações alucinatórias e delirantes, na forma das quais esses mesmos pacientes tentavam preencher e articular cada qual seu próprio fundo de excitamentos.

Palavras-chave:
Psicose – teoria do self – ajustamentos alucinatórios e delirantes


1. Psicose na literatura de base da Gestalt-terapia

No prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company da obra Ego, Fome e Agressão, Perls anuncia que “no presente momento estou envolvido em um trabalho de pesquisa sobre o mal funcionamento do fenômeno figura-fundo nas psicoses em geral e na estrutura da esquizofrenia em particular. Ainda é cedo demais para dizer quais serão os resultados; parece que vai resultar em alguma coisa” (1942, p.32). E até os dias de hoje estamos no aguardo desses resultados que, entretanto, nunca se fizeram conhecer. Alguns anos mais tarde, pela pena de Paul Goodman, Perls e seus companheiros de fundação da Gestalt-terapia afirmaram, em trecho que tratava da “neurose como perda das funções de ego”, que, “como distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). Para eles, a psicose pode ser entendida como “a aniquilação de parte da concretude da experiência; por exemplo, as excitações perceptivas ou proprioceptivas. Na medida em que há alguma integração, o self preenche a experiência: ou está degradado por completo ou incomensuravelmente grandioso, o objeto de uma conspiração total, etc.” (1951, p. 235). Ora, o que os autores querem dizer quando se referem a aniquilação de parte da concretude da experiência? Em que sentido as excitações perceptivas e proprioceptivas constituem a concretude da experiência? Que ações são essas por cujo meio o self “preenche” a experiência, constitui um objeto de conspiração total, se “degrada” ou se “engrandece” incomensuravelmente? Trata-se de uma referência aos quadros clássicos da esquizofrenia, da paranóia, da melancolia e da mania? Nosso trabalho consiste numa tentativa de aprofundamento dessas “pistas” legadas pelos fundadores da Gestalt-terapia no sentido de pensar a psicose à luz da teoria do self.

2. Função id: uma leitura fenomenológica

Para Perls, Hefferline e Goodman (1951) a descrição do self – ou, o que é a mesma coisa, a descrição dos processos que constituem essa reedição criativa de nós mesmos no campo organismo/meio – é um trabalho fenomenológico. Afinal, trata-se da descrição do que há de essencial nessa experiência. Por essa razão, propõem, não uma teoria da personalidade ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – processo esse a que denominaram de self. Trata-se “da descrição e análise exaustivas de estruturas possíveis” (PHG, 1951, p. 184), por cujo meio poderíamos nos representar uma continuidade no processo de crescimento (retomada criadora) do organismo. Por meio dessa descrição, apartam o sistema self da visada naturalista do cientista e do homem comum – visada esta que não faz senão fragmentar o self em um número infinito de individualidades empíricas. Todavia, conservam a linguagem utilizada, por um lado, pela teoria organísmica de Goldstein e, por outro, pela psicanálise freudiana. Afinal, tais linguagens são capazes de remarcar (ainda que precariamente) o caráter eminentemente holístico das funções por cujo meio o self se manifesta, muito embora nem Goldstein nem Freud compreendessem o self de forma transcendental.
Baseados nessa forma peculiar de se fazer fenomenologia, Perls, Hefferline e Goodman (1951) propõem a discriminação entre, pelo menos, três funções ou operações básicas do self, que eles denominaram de “estruturas” (p. 184) ou “sistemas parciais do self” (p. 177), a saber: a função id, a função de ego e a função personalidade. Elas não são três partes do sistema self, ou três etapas que eu poderia observar numa sucessão cronológica. Ao contrário, as três funções são apenas três pontos de vista diferentes que eu posso ter de uma mesma experiência, que é o sistema self em funcionamento. O que significa que, em cada experiência vivida (ou seja, na qual há um fluxo de awareness), eu tenho concomitantemente as três funções. A visada de uma ou de outra é uma escolha teórica de quem está a descrever a experiência. A frase “Sou eu que estou respirando neste momento” designa, simultaneamente: i) uma personalidade, uma réplica verbal de uma identidade objetiva (marcada pelo pronome reto “eu”); ii) uma função de ego, que é a ação mesma de emitir a frase em questão; iii) quanto uma função id, que é a necessidade ou excitamento mais além dos valores semânticos fixados pela frase supra. Falemos um pouco da função id, a cujo comprometimento Perls, Hefferline e Goodman atribuem a gênese dos ajustamentos psicóticos.
Por função id, Perls, Hefferline e Goodman (1951, p. 154) compreendem:

o fundo determinado que se dissolve em suas possibilidades, incluindo as excitações orgânicas e as situações passadas inacabadas que se tornam conscientes, o ambiente percebido de maneira vaga e os sentimentos incipientes que conectam o organismo e o ambiente.

Por um lado, a função id é a “retenção” de algo que não se inscreve como conteúdo, apenas como hábito: forma impessoal e genérica, presença anônima do mundo em mim. Por outro, id é a “repetição” desse hábito, sua reedição como orientação tácita de nossa vida atual. Em ambos os casos, id significa a “impossibilidade” de eu me desligar do mundo, a manifestação “invisível” do mundo em mim, a “generalidade” de minha inserção na vida dos semelhantes e das coisas, a “ambigüidade” permanente de minha existência. Trata-se daquilo que, justamente, Perls, Hefferline e Goodman denominaram de “concretude de nossa experiência”, à qual, uma vez retida, oferece-se como fundo de preteridade para a experiência de contato.
Para nossos propósitos atuais, interessa-nos tão somente remarcar essas duas operações fenomenológicas fundamentais implícitas à função id, que é a retenção e a repetição do retido junto aos novos dados na fronteira de contato entre o passado e o futuro.
A retenção não é diferente da formação do hábito. Ou, o que é a mesma coisa, a retenção não é diferente da assimilação de parte da experiência de contato, precisamente, daquela parte denominada de “forma”. Tal forma pode ser fixada como sentimento, padrão motor ou articulação verbal. Trata-se do conjunto de elementos que constituem aquilo que Perls, Hefferline e Goodman denominaram de awareness sensorial.
Já a repetição, a qual sempre depende do surgimento de um dado novo na fronteira de contato, não é diferente da configuração das formas retidas enquanto um fundo disponível para o novo dado que se apresenta. Ela corresponde ao primeiro passo para a formação de uma gestalt, de um todo indeterminado em torno do dado na fronteira de contato.
E, conforme nosso entendimento, quando Perls, Hefferline e Goodman afirmam ser a psicose a “aniquilação de parte da concretude da experiência” é ao comprometimento das operações elementares da função de id que eles se referem.


3. Psicose como um ajustamento

A psicose é uma forma de ajustamento do sistema self em que os dados vivenciados (na fronteira de contato entre o passado e o futuro desse mesmo sistema): i) ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de excitamento de novas vivências, ii) ou, uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. De certa maneira, é como se as experiências de contato: i) ou não pudessem ser “esquecidas” e, nesse sentido, inscritas como uma estrutura histórico-afetiva, ii) ou não pudessem estabelecer, depois de retidas, uma relação espontânea capaz de servir de alavanca para as novas experiências de contato. Por esse motivo, as novas experiências aconteceriam privadas de uma intencionalidade específica ou, conforme a linguagem própria da Gestalt-terapia, desprovidas de awareness sensorial. Em rigor, nessa forma de ajustamento, a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função de ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos meios para lidar com o dado na fronteira de contato. O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de “rigidez (fixação)” (1951, p. 34), tal como aquela observável nos comportamentos por vezes descritos pela psiquiatria.
Aqui é preciso introduzir um parêntesis. Afinal, de um modo geral, a psiquiatria se ocupa mais do malogro de nossas tentativas de elaboração social daquilo que em nós não se retém ou se articula espontaneamente; e menos de nosso esforço para estabelecer um ajustamento capaz de preencher ou articular, junto aos dados na fronteira de contato, o fundo (id) que deveria poder se repetir. Por outras palavras: a psiquiatria não descreve o ajustamento psicótico propriamente dito, mas a falência social dele. Por isso, é importante não confundir o “surto” psicótico com o “ajustamento” psicótico. O surto psicótico consiste no estado aflitivo que acomete aqueles que não encontram, nos diversos laços sociais dos quais participam, condições para estabelecer ajustamentos psicóticos. Os ajustamentos psicóticos, a sua vez, são tentativas socialmente integradas de organização do fundo de excitamentos espontâneos.
Nesse sentido, quando se diz que, nos ajustamentos psicóticos, percebemos uma espécie de rigidez, tal não tem relação com aquelas respostas comportamentais totalmente desorganizadas, com os quais, nas mais das vezes, costumamos caracterizar a psicose como uma sorte de “doença”. A rigidez tem antes relação com a “repetição” das tentativas de preenchimento e articulação daquilo que, espontaneamente, não se organiza em alguns momentos de nossa vida, a saber, nosso próprio desejo, nossos próprios excitamentos. Na ausência deles, alucinamos, deliramos e identificamos, nos dados materiais presentes em nosso campo de relações, possíveis representantes daquilo que nossos excitamentos haveriam de ser. Muitos consulentes , por exemplo, insistem em perguntar, ao terapeuta, se o que eles estão fazendo é certo ou errado, adequado ou não adequado. Os terapeutas podem nem desconfiar que, nessas solicitações, possa estar acontecendo um ajustamento psicótico. É verdade que, algumas vezes, os consulentes fazem essas perguntas por que tentam manipular o clínico, atribuindo a este uma responsabilidade da qual querem se desincumbir, o que poderia perfeitamente bem ser entendido pelo clínico como um ajustamento neurótico. Mas, outras vezes, os consulentes fazem-nas porque simplesmente não conseguem compreender o que lhes é solicitado no dia-a-dia, ou organizar o que sentem ante as solicitações. E é possível que possam “identificar” na palavra do terapeuta uma forma de preencher ou organizar o fundo de excitamentos que, para eles, não se define.
Razão pela qual, por mais rígidos que sejam, nos ajustamentos psicóticos, há um intenso trabalho de criação na fronteira de contato. O ajustamento psicótico não é uma doença. Ele também é um ajustamento criador, para usar a letra de Jean-Marie Robine . É uma forma de viver face às condições de campo que a ele se impõem e que tem relação com um funcionamento atípico da função id. Nos ajustamentos psicóticos, o self inventa - junto aos dados na fronteira de contato - a história que ele não pode reter ou espontaneamente arranjar. Quando bem sucedida, essa invenção vem substituir os excitamentos que, diante do dado, i) ou não se apresentaram, ii) ou se apresentaram de modo falhado ou, ainda, iii) se apresentaram de modo desarticulado.

3. Ações da função de ego nos ajustamentos psicóticos

O agente dessa invenção é o aspecto do self denominada de função de ego. A função de ego, entretanto, não opera do mesmo modo como ela operaria se tivesse a sua disposição um fundo espontaneamente articulado. Não se trata de encontrar, no dado, possibilidades de expansão do fundo de excitamentos disponível. Afinal, nos ajustamentos psicóticos, esse fundo não está disponível, ao menos como um todo organizado, como uma orientação intencional para a ação do ego. Ou, o que é a mesma coisa, nos ajustamentos psicóticos, a awareness sensorial está comprometida (ausente, falhada ou desarticulada) e, conseqüentemente, ela não se constitui como base, como motivo para a ação da função de ego junto aos dados na fronteira. Ao ego resta então operar de um modo diferente. Em vez de buscar, nos dados, possibilidades de expansão do excitamento (awareness sensorial), ele procura no dado (seja este o corpo próprio, o corpo de outrem, uma palavra ou uma coisa mundana) o excitamento que a função id ela própria não forneceu, ou forneceu a maior, como um elemento desarticulado. Tudo se passa como se o dado pudesse preencher aquilo que, espontaneamente, não se apresentou; ou, como se o dado pudesse dar um limite à angústia proveniente de múltiplos excitamentos que, por conta própria, não se distinguiram quanto a sua relevância ou emergência.
Até o presente momento, nossa pesquisa pôde identificar três tipos fundamentais de ação do ego nos ajustamentos psicóticos: os ajustamentos psicóticos autistas, os ajustamentos psicóticos de preenchimento do fundo e os ajustamentos de articulação de fundo. A diferença nessas ações tem relação com o modo como o fundo se caracteriza no momento da vivência do contato.

3.1 Ajustamentos psicóticos autistas

Nesse tipo de ajustamento, a função de ego quase não dispõe de um fundo de co-dados retidos. Afinal, a função de id apresenta-se severamente comprometida. Há uma falha na operação de retenção de formas relativas às vivências primitivas de interação intercorporal da criança no meio. Por outras palavras, a intersubjetividade primária, nos termos da qual o infante inicia seu processo de constituição de uma identidade especular, não se deixa fixar como um fundo assimilado. Tudo se passa como se os gestos desempenhados pelo infante na fronteira de contato não visassem coisa alguma, tampouco respondessem aos apelos vindos dos semelhantes.
Esse é o caso, por exemplo, dos quadros tradicionalmente descritos a partir dos critérios diagnósticos do Dr. Kanner. A função de ego é refratária aos apelos ou necessidades advindas dos semelhantes, razão pela qual sua ação parece acontecer sem meta, como se fosse acometida de uma desorientação. O isolamento, concretizado na forma de um mutismo, parece oferecer um tipo de satisfação sem objeto, sem corpo.
Há, além desses quadros, aqueles classificados como síndrome de Asperger. Diferentemente dos primeiros, os segundos conseguem circular muito bem em determinados contextos produzidos de maneira simbólica. Ainda assim, nesses casos, o sofredor não consegue agregar, a essa produção cultural, um fundo emocional. Mesmo dispondo de um verbalismo, trata-se de um verbalismo abstrato que raramente é capaz de acompanhar as sutilezas do emprego cotidiano, como o emprego metafórico, por exemplo. Ainda assim, podemos identificar uma forma metonímica de produzir ligações entre determinadas classes de abstração, onde se deixa verificar uma certa satisfação.
Nesse ponto é importante esclarecer que, diferentemente daqueles que defendem que o autismo é primordialmente uma patologia orgânica ou uma síndrome invasiva, sem traços tipicamente psicóticos, como a alucinação e o delírio, acreditamos se tratar de um ajustamento que partilha, com as outras formas de psicose, um traço comportamental comum, precisamente, a inexistência de um fundo habitual e afetivo que, espontaneamente, oferecesse às ações da função de ego uma orientação intencional. Tanto nas esquizofrenias quanto no autismo, por exemplo, podemos testemunhar ações desprovidas de metas que pudessem ser reconhecidas no laço social.
De todo modo, mesmo no caso dos ajustamentos mais graves, como os de Kanner, podemos observar uma tolerância a intervenções terapêuticas que buscam estabelecer uma espécie de inclusão pedagógica das crianças que estejam vivendo essa situação. A proposta de intervenção é que: o terapeuta possa colaborar para a ampliação do corpo, o que significa, da função de ego em seu extrato mais elementar. Dessa forma, o autista terá a chance de “responder”, não a partir de um fundo de excitamentos afetivos, certamente, mas a partir do que foi fabricado, produzido pedagogicamente como linguagem. Aliás, é importante frisar que, nesses ajustamentos, dificilmente essas fabricações pedagógicas conseguem agregar algum valor afetivo. Ainda assim, cria-se uma chance para que ele possa fazer um laço social, ainda que aleatório.

3.2 Ajustamento psicótico de preenchimento de fundo

Nesses casos, a função de ego atua como se estivesse a preencher, por meio de alucinações de toda ordem (auditivas, visuais, cinestésicas e verbais, como as logolalias), a inexistência dos excitamentos com os quais poderia responder ao apelo do semelhante na fronteira de contato. A demanda do semelhante, na fronteira de contato, desencadeia em mim a compreensão de que, nessa experiência especificamente (nesse sistema self, particularmente), não tenho como responder, não tenho como fazer cessar o apelo que a mim é dirigido. Diferentemente do que acontece, caso me ajustasse de modo autista, compreendo que se quer algo de mim, disponho de um fundo intercorporal que me permite compreender estar havendo, entre eu e o semelhante, uma situação de contato. Ainda assim, a função de ego – que estabelece nesse momento minha singularidade no campo - não dispõe de parâmetro para interagir com esse apelo que, de alguma maneira, solicita o que não sei de forma alguma. Compreendo que algo é pedido, mas não sei o que se pede. A palavra, o gesto, a ação demandada são incompreensíveis. Tudo se passa como se a função de ego na qual estou polarizado não fizesse parte da comunidade lingüística do demandante, não participasse do mesmo mundo, do mesmo sistema self.
Ora, aqui, como nos ajustamentos autistas, a função de ego está às voltas com a ausência de um vivido (co-dado) que não foi retido. Porém, diferentemente dos ajustamentos autistas, os vividos não retidos não dizem respeito às experiências intercorporais que constituem nossa intersubjetividade primária (a percepção do olhar, da voz, do gesto do semelhante e assim por diante). Dessa vez, o não retido tem relação com as vivências de contato instituídas pela linguagem, especificamente com as vivências culturais em que se procura deslocar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos originalmente vividos de maneira corporal. Por outras palavras, o que não se retém é o simbolismo na forma da qual transformamos em “valor” social o afeto, a agressividade, a curiosidade, enfim, toda ordem de experiência até então vivida como uma intersubjetividade primária, intercorporal.
Ora, diante de um símbolo que demanda um fundo de outros símbolos investidos de um valor afetivo, se estes outros símbolos não estiverem retidos, a função de ego precisa produzi-los ou, o que é a mesma coisa, a função de ego necessita aluciná-los. Nesse sentido, é freqüente observarmos ações em que o agente do contato parece abandonar o dado na fronteira para se ocupar de algo que parece não estar acontecendo, parece não estar ali localizado no espaço. É como se ele abandonasse os dados na fronteira em proveito de um irreal que, entretanto, não está anunciado como uma possibilidade a partir dos dados, mas consiste em algo estranho, não disponível, precisamente, o excitamento que deveria dar sentido ou tornar o dado na fronteira algo desejável. Um consulente relata seu grande desconforto ao cruzar por homens mais velhos onde quer que esteja. Se, por um instante, um desses homens lhe dirige a palavra, ele sente seu pescoço formigar, como se a resposta estivesse presa na garganta. Ele produz com a garganta a resposta que não encontra em sua linguagem, não porque não domine o idioma, ou esteja acometido de qualquer distúrbio fonológico ou cognitivo. Não há em seu fundo de pensamentos uma representação que possa ser repetida naquele instante. A alternativa do ego, naquele momento, foi responder por meio de uma alucinação sinestésica. O comportamento que aqui – como em todos os ajustamentos de preenchimento de fundo - podemos observar parece algo dividido, o que justifica o emprego do termo clássico “esquizofrenia” para designá-los. E, a partir da fenomenologia clássica dos comportamentos esquizofrênicos, podemos distinguir entre dois tipos fundamentais de ajustamento promovidos pela função de ego: a esquizofrenia paranóide e a esquizofrenia catatônica.

3.2.1 Esquizofrenia paranóide

No caso da esquizofrenia paranóide, o que fundamentalmente caracteriza a ação da função de ego é a ostensiva tentativa de utilização do dado na fronteira como um meio para preencher a ausência de fundo cultural, o qual não se inscreveu. Esse dado, nas mais das vezes, é o próprio corpo no qual se verifica a presença de uma função de ego. Esta usa o corpo (o próprio e o do semelhante) para fazer às vezes daquelas palavras, daquelas instituições culturais que tornariam desejáveis as outras palavras, as outras instituições produzidas na fronteira. Assim, o corpo não só é empregado de modo a buscar algo ausente, mas, sobretudo, para representar uma ausência cultural. O corpo, nesses termos, assume o valor de um corpo-palavra, tal como naqueles episódios em que o esquizofrênico, para responder a uma demanda sobre o quanto ele “gosta” do calor, põe sua mão numa chama. Ou, então, para responder à questão: “você está com medo?”, ele “literalmente vê” uma figura bizarra (a qual, entretanto, nunca é definida, investida de predicados socialmente aceitos, como no caso da paranóia, sobre a qual falaremos mais à frente).
A reação imediata às demandas sociais, entretanto, é precedida por um uso do corpo para fazer eco. É o caso das ecolalias, logolalias e todas as formas de repetição, por meio das quais a função de ego, nesses ajustamentos, faz duplo aos semelhantes no laço social. As alucinações produzidas a partir do corpo parecem oferecer, nesse tipo de ajustamento, uma sorte de satisfação, porquanto detém, por um instante, a demanda simbólica que vem do semelhante.
A intervenção terapêutica, nesses casos, consiste em colaborar para que a função de ego no consulente possa “alucinar” o fundo de que não dispõe. O terapeuta, em algum sentido, “empresta” sua percepção e sua linguagem para que os consulentes possam, num primeiro momento, se apropriar das formas com as quais criam respostas. Trata-se de um trabalho de pontuação dos movimentos, repetições, logolalias, enfim, quaisquer alucinações que estejam sendo produzidas. A idéia é ampliar essas alucinações e tratar delas como se fossem um “jogo”, uma “atividade” da qual o próprio terapeuta pudesse participar. Essa estratégia não só valida a função de ego no consulente como amplia enormemente a contratualidade social dos ajustamentos por ela produzidos. Não se deve, em hipótese alguma, desqualificar, ou mesmo interpretar a alucinação produzida, como se ela tivesse um sentido, algo por se descobrir. Ao contrário, é preciso perceber que a alucinação é indício da autonomia da função de ego no consulente, autonomia essa que deve ser secretariada, protegida e, na medida do possível, ampliada.


3.2.1 Esquizofrenia catatônica

A esquizofrenia catatônica é um desdobramento da esquizofrenia paranóide. Trata-se de um ajustamento em que a função de ego, em vez de continuar produzindo novas alucinações que pudessem deter as demandas sociais na fronteira de contato, procura então se fixar naquelas já produzidas. Trata-se de uma cronificação das alucinações paranóides, que ficam parcialmente fixadas. Aliás, a fixação da função de ego em alucinações corporais já estabelecidas é a forma típica da esquizofrenia catatônica. Se, na paranóide, o corpo era, simultaneamente, um corpo-palavra, agora ele aparece como um resto de palavra, um vestígio de uma alucinação que outrora talvez tivesse funcionado. Nesse sentido, testemunhamos na fronteira comportamentos repetitivos, como se fossem rituais. Em verdade, trata-se de expedientes que, alguma vez, obtiveram algum êxito. Mas, depois disso, não foram assimilados como fundo de novas criações. Eles permanecem apenas como vestígio de um conteúdo remoto; e não como uma forma, como um hábito que pudesse ser retomado enquanto fundo de novas criações. Razão pela qual observamos, no decurso dos anos, uma deterioração das alucinações, que ficam reduzidas a um conteúdo mínimo, a um gesto mínimo.
Essa deterioração se agrava ao ponto de alcançarmos o ostracismo, a desistência ou abandono da palavra-corpo. Nesses casos, o embotamento e o isolamento social são constantes. O quadro evolui para um estado de mutismo, que muito se assemelha ao mutismo do autismo. Mas, diferentemente deste, em que não há resposta aos apelos elementares constituídos no campo de nossa intersubjetivdade primária (olhar, gestualidade...), o mutismo das esquizofrenias catatônicas é sempre uma deliberação, uma resposta aos apelos sociais. A função de ego efetivamente delibera em favor do isolamento e do mutismo, razão pela qual empregamos o termo “mutismo secundário” para designá-lo.
A intervenção aqui não é diferente daquela recomendada no caso dos ajustamentos esquizofrênicos paranóides. Ela consiste na ampliação do vigor criativo da função de ego no consulente. Aqui, entretanto, o terapeuta dispõe de um fragmento de simbolização, o qual justifica não uma interpretação, mas uma sorte de trabalho “arqueológico”, como se a alucinação original pudesse ser resgatada. Esse trabalho é importante na medida em pode favorecer a assimilação dos ajustamentos anteriores. Tudo se passa como se, ao emprestar sua “memória” ao consulente, o terapeuta favorecesse a transformação da alucinação em hábito e, nesse sentido, em fundo assimilado.

3.3 – Ajustamento psicótico de articulação de fundo

Nos ajustamentos psicóticos de articulação de fundo, o que se passa é algo bem diferente do que acontece nos dois anteriores. Isso porque, há retenção. As vivências de contato anteriormente estabelecidas são assimiladas, sejam elas intercorporais ou culturais. Acontece, entretanto, que a falha agora repousa no processo de repetição desse fundo junto aos novos dados na fronteira de contato. Ou, mais precisamente, os dados retidos não comparecem, junto ao dado, como um fundo de excitamento articulado, integrado entre si. É como se os muitos co-dados retidos se apresentassem como fundos diferentes, havendo não apenas um fundo, mas muitos. Em decorrência dessa desarticulação, também aqui o sistema self não dispõe de uma orientação intencional espontânea (awareness sensorial), ao menos de uma orientação unificada. Conseqüentemente, a função de ego não sabe com qual fundo operar, a partir de qual parâmetro considerar o dado. Em decorrência disso, não se forma, para a função de ego, uma figura definida. A função de ego precisa antes se ocupar do fundo, articulá-lo, estabelecer para os muitos co-dados uma organização que, espontaneamente eles não têm.
O que nós podemos observar no modo como a função de ego opera nesses casos é que ela estabelece ao menos duas estratégias de organização. Por um lado, temos a estratégia que consiste em articular os vários co-dados como se se tratasse de algo que não pertencesse ao self. Os co-dados que chegam até a fronteira de contato, o self não os reconhece como seus. Para tanto, ou a função de ego i) fragmenta, de maneira delirante, o dado em múltiplas partes, de modo a poder atribuir a cada uma delas os múltiplos co-dados que se apresentam (caso em que temos a paranóia dissociativa) ou ii) procura unificá-los, junto ao dado que se apresenta, enquanto um semelhante ameaçador e que, nesse sentido, deve ser excluído (paranóia persecutória).
Por outro lado, a função de ego pode tentar se “identificar” com esses co-dados. Para tanto, ou a função de ego identifica, nessa desarticulação, a perda da unidade, a perda da integração espontânea do self ou, o que é a mesma coisa, a morte do excitamento (caso em que temos a melancolia), ou a função de ego identifica, nessa desarticulação, uma sorte de ampliação ao infinito do sistema self (caso em que temos a mania). Nesses dois casos, o que a função de ego está tentando fazer é estabelecer um limite para esse fundo desarticulado. Por meio desse limite (de perda ou de posse absoluta), a função de ego torna esse fundo algo suportável e, em alguma medida, parâmetro para que se possa assumir ou rejeitar as novas possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato.

3.3.1 Paranóia dissociativa

A principal característica desse tipo de ajustamento é a fragmentação do dado na fronteira em múltiplas partes desconectadas entre si. Trata-se de um delírio dissociativo que permite ao ego atribuir, a cada parte, um dos co-dados que esteja a sentir de maneira desarticulada. Trata-se de uma estratégia delirante, em que o dado, seja ele o corpo próprio, uma coisa ou o corpo do semelhante, são decompostos em tantas partes quantas forem necessárias para que os múltiplos co-dados (excitamentos) possam ser dissipados.
Em decorrência desse expediente, é freqüente testemunharmos tentativas de ajustamento em que alguém, por exemplo, fragmente seu corpo em várias partes isoladas, como se se tratasse de uma comunidade de sujeitos separados. Ele trata os braços, o cabelo, as pernas, os pulmões, o coração, como se fossem entidades diferentes. Cada órgão tem a sua doença, convalesce de um excitamento diferente. Aliás, a doença é sempre algo buscado, pois é uma forma de decretar que o excitamento está se esvaindo, indo embora. Nesse sentido, podemos falar aqui de uma dissociação hipocondríaca.
Ainda nesse tipo de ajustamento, podemos freqüentemente observar a errância comportamental. A pessoa, a cada momento, está assumindo uma atividade nova, deixando para trás as outras e assim sucessivamente. Ele desliza metonimicamente de uma tarefa a outra, de uma direção a outra, de uma dívida a outra, de uma relação a outra, de um trabalho a outro. Não porque ele quer tudo, mas para poder se livrar do anterior e, um por um, de todos. Afinal, cada via, cada dado que se apresenta é uma ocasião para ele eliminar isso que ele sente, mas não consegue compreender como seu, precisamente, o fundo de excitamentos.
Em certa medida, esses delírios de fragmentação dão ao sistema self um certo alívio, uma dissipação dos excitamentos, o que nos permite falar do delírio dissociativo como a satisfação possível desse tipo de ajustamento.
A intervenção nesses casos consiste em assegurar, ao consulente, que ele possa desfrutar de muitas alternativas. O terapeuta zela para que o consulente possa continuar “caminhando”, possa continuar buscando novas formas de alienação de seus excitamentos. Não se trata de fazer com que o consulente se responsabilize pelas suas escolhas, mas, ao contrário, que ele possa se desincumbir delas em proveito de novas. Dessa maneira, ele amplia as possibilidades de atenuar a angústia advinda da presença incessante de excitamentos que não se articulam segundo uma ordem de prioridade a cada instante de sua vida. O terapeuta deve poder fluir de um assunto a outro, de um lugar a outro, sem se preocupar em amarrar coisa alguma numa totalidade de sentido. O deslocamento metonímico não é, para esse tipo de ajustamento, uma dissimulação projetiva de excitamentos inibidos. É, ao contrário, uma tentativa de por limite nos excitamentos, que assim tornam-se suportáveis.

3.3.2 Paranóia persecutória

Nesse tipo de ajustamento, a estratégia assumida pela função de ego não é fragmentar o dado em múltiplas partes e distribuir entre elas os múltiplos excitamentos vividos de maneira desarticulada. Ao contrário, dessa vez, a função de ego passa a considerar o dado uma unidade estranha, um pólo estrangeiro que reúne em si todos os excitamentos desarticulados que estejam sendo sentidos na fronteira de contato.
Para isso, a função de ego precisa constituir o dado, que pode ser o próprio corpo, ou o corpo do semelhante, como esse estranho, diante do qual ela então passa a sentir pânico. Afinal, se a função de ego está acometida da presença de excitamentos estranhos, tais excitamentos têm relação com esse dado que, a sua vez, haveria de querer destruir a função de ego. Ou seja, a função de ego delira que os excitamentos que estão sendo sentidos em verdade são efeitos da ação persecutória de um dado ameaçador bem definido e claramente identificável na fronteira de contato.
Frente a esse semelhante ameaçador, a função de ego desencadeia uma reação de fuga e de conflito. Ela faz guerra. Tal guerra, enquanto um delírio persecutório, implica uma certa acomodação dos excitamentos desarticulados vividos pela função de ego. Por conseguinte, trata-se de uma certa satisfação possível.
A intervenção nesses casos também não se pauta pela desqualificação do delírio. Afinal, é somente depois de ter sido unificado como um perseguir conhecido que o fundo de excitamentos torna-se algo suportável para a função de ego. Ainda assim, o terapeuta deve poder caracterizar, para seu consulente, o valor de troca social que o deliro produzido representa. De posse desse saber sobre si, o consulente pode reivindicar “proteção”, “soluções”, enfim, contratos sociais que validem suas construções.

3.3.3 – Identificação depressiva

Nesse tipo de ajustamento, a função de ego procura organizar os co-dados (desarticulados entre si) em torno de um objeto com o qual, então, o self possa se “identificar”. Aqui, especificamente, o objeto deve poder representar a desarticulação dos co-dados como uma “articulação perdida”. Razão pela qual o objeto escolhido é sempre um “objeto perdido”. Mais do que isso, a função de ego trabalha no sentido de identificar o sistema self a esse objeto. A função de ego trabalha no sentido de promover a mortificação do self. O objeto perdido, por conseguinte, fixa essa mortificação e permite a vivência do luto, que é a satisfação possível alcançada nesses casos.
Diferentemente do que acontecia nas paranóias, a função de ego não se ocupa de dispersar ou alienar os excitamentos que não se apresentaram para ela de maneira articulada, o que quer dizer, segundo uma ordem de importância. A função de ego agora assume essa desarticulação e sua impotência frente a ela. Mas, para isso se tornar suportável, a função de ego precisa deprimir; ela precisa elaborar essa desarticulação e essa impotência como uma morte ou como um processo de morrer. É freqüente, nesse sentido, a função de ego operar com os excitamentos como se se tratasse de mortes efetivas, vivências aniquiladas e que, portanto, perderam a energia e a capacidade de se repetirem. Ou, ainda, nesses casos, é freqüente a função de ego buscar, nos dados na fronteira de contato, a confirmação de que: “já não há o que fazer”, como se o sistema self tivesse se transformado em um projeto malogrado, fracassado, ou, então, que não fosse mais merecedor de novas oportunidades. De todo modo, a função de ego se “fixa” nessas perdas, como se as carregasse no próprio corpo ou, o que pode ser muito grave, como se fosse essa perda, casos em que a função de ego deixa de operar, porquanto considera o self um sistema morto, a própria experiência da morte.
A estratégia de intervenção, nesses casos, consiste ajudar o consulente a fazer o “luto” das experiências em que ele malogrou, em que os excitamentos não puderam ser articulados como um todo de sentido, como uma personalidade na qual ele pudesse se identificar. A despedida em relação a essas experiências é de fundamental importância, uma vez que somente depois de abandoná-las a função de ego torna-se disponível aos novos dados e aos excitamentos de que ela dispõe, apesar da desarticulação.

3.3.4 – Identificação Maníaca

Na via inversa do que se passa na melancolia depressiva, na mania, a função de ego opera no sentido de negar a desarticulação dos co-dados. Em vez de celebrar a perda, agora a função de ego nega qualquer tipo de perda. Para tanto, a função de ego lê, nas possibilidades abertas pelo dado na fronteira de contato, a infinitude de sua capacidade para articular e, conseqüentemente, a articulação daquilo que até então não se articulava, precisamente, o fundo de excitamentos. Essa identificação megalomaníaca com as possibilidades abertas pelo dado constitui o que na tradição fenomenológica da psiquiatria chamamos de “foliex à deux”. Tudo se passa como se a função de ego percebesse, nas possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato, uma parceria incondicional capaz de potencializar a capacidade da própria função de ego para articular o que não se articula de modo espontâneo. Aliás, a megalomania é a satisfação possível alcançada nesse ajustamento.
A intervenção terapêutica nesse tipo de ajustamento consiste no oferecimento de limites concretos às empresas estabelecidas pela função de ego no consulente. Trata-se de pontuar até onde a terapia e os laços sociais do próprio consulente suportam as ações propostas por este. A formulação desse limite atenua a angústia generalizada decorrente do fato de o consulente não vislumbrar para si uma meta. Não apenas isso, esse limite viabiliza, para o consulente, a discriminação entre quais excitamentos são seus e quais não são. Dessa maneira, o terapeuta viabiliza a passagem do consulente de ajustamentos de menor aceitação social para ajustamentos em que os riscos de rejeição sejam menores. Esse escopo, aliás, deve orientar o terapeuta em quaisquer ajustamentos psicóticos. Afinal, o malogro social consiste numa injunção cuja conseqüência pode ser o surto do ajustamento psicótico.

5. Clínico como acompanhante solitário

No trabalho clínico com consulentes que, por vezes ou na maioria delas, se ajustam psicoticamente, os clíncos raramente identificam as categorias com as quais, até aqui, nos ocupamos de caracterizar as diferentes ações da função de ego (aprender, preencher, articular...). Os ajustamentos psicóticos, nas mais das vezes, são muito sutis e, sobretudo, não dirigem ao clínico uma demanda que os denunciasse, como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nestes, os consulentes freqüentemente atribuem ao clínico a responsabilidade de lidar com a ansiedade advinda os excitamentos que estes mesmos consulentes inibem de maneira inconsciente. Nesse sentido, demandam ao clínico: seja meu modelo (confluência); seja minha lei (introjeção); seja meu réu (projeção); seja meu algoz, talvez, meu cuidador (retroflexão); seja meu fã (egotismo) e assim por diante . Nos ajustamentos psicóticos, a sua vez, os consulentes não demandam nada. Quando muito, “fazem uso” da imagem, das ações e das palavras do clínico, servindo-se delas para preencher ou articular algo que, de forma alguma, é uma tentativa de manipulação ou dissimulação. Os consulentes, quando se ajustam psicoticamente, estão tentando compreender algo que se passa com eles; o que é diferente de quando se ajustam neuroticamente, ocasião em que procuram fugir daquilo que estão sentindo (como ansiedade advinda do excitamento inibido). Por isso, nos ajustamentos psicóticos, o clínico quase não tem lugar. O que não apenas dificulta qualquer tentativa de classificação que o clínico nesse momento tentasse fazer, quanto também desencadeia, nesse mesmo clínico, um insuportável estado de angústia. Afinal, o clínico fica sem saber o que se passa e sem saber o que dele se quer. O clínico sente-se um acompanhante solitário.
A experiência clínica nos ensinou essa dura lição: somente quando alcançamos este estado de profunda insegurança e angústia ante os ajustamentos produzidos pelos nossos consulentes é que nos tornamos aptos a participar do esforço que estejam empreendendo para se ajustar. É fato que, depois de tanto tempo de acompanhamento e reflexão, nossa ação parece estar instruída por um fundo de pensamentos já estabelecido – e que este pequeno texto tenta tornar público. Mas a intervenção é mais intuitiva do que planejada; e consiste em ocupar um lugar de secretário, de auxiliar nas ações que a função de ego no consulente esteja desempenhando, sejam elas alucinatórias, delirantes ou identificatórias. Afinal, não conseguimos compreender o que o consulente elabora, onde ele quer chegar, o que ele está omitindo ou procurando. Ele não dá sinais disso, não percebemos nele traços ansiogênicos, que denunciariam para nós a presença de uma inibição inconsciente. Ao contrário, nos momentos em que se ajusta psicoticamente, o consulente age como se tivesse uma certeza impenetrável: a de que só ele pode dar conta da dúvida que o abate. Tentar afrontar essa condição ou roubar do consulente o lugar de protagonista redunda, nas mais das vezes, no fracasso da terapia; ocasionalmente, num pequeno surto.
Respeitar esse limite e, ao mesmo tempo, se fazer disponível para secretariar o ajustamento que, naquele momento, estiver acontecendo é algo muito difícil de fazer. Implica, para o clínico, uma suspensão das próprias expectativas. Em alguma medida, temos de ter a coragem de confiar nos consulentes e nos deixar levar para onde eles quiserem nos levar – até o limite em que os honorários justificarem essa disponibilidade. Mas não apenas isso. Precisamos compreender que o nosso limite, o limite que impomos aos nossos consulentes é um parâmetro de extrema relevância para que eles possam se certificar do êxito de seus ajustamentos. Nossa pontuação do término da sessão, a denúncia de nossa própria ignorância para acompanhar o delírio que estejam produzindo ou a declaração de nosso mal-estar frente ao contato físico muito intenso que procuram às vezes estabelecer: tudo isso ajuda os consulentes a se organizarem em seus ajustamentos, seja porque podem então compreender a finitude das solicitações que dirigimos a eles, seja porque podem enfim compreender que estamos acompanhando o que eles estão fazendo. De um modo geral, podemos dizer que a melhor intervenção em ajustamentos psicóticos é aquela em que o clínico aprende, alucina, delira e se identifica junto com seu consulente, de modo a poder estabelecer, “de dentro”, o limite do ajustamento que estiver acontecendo.

6. Considerações finais

Podemos dizer, em síntese, que a psicose é, por um lado, o comprometimento da função id ou, o que é a mesma coisa, da capacidade do sistema self para espontaneamente articular, quando não para disponibilizar, um fundo de co-dados (excitamentos ou intenções). Mas, por outro, a psicose é um ajustamento. Trata-se da efetiva capacidade da função de ego para aprender, preencher e articular seu próprio fundo, de modo a poder operar fluidamente com os dados na fronteira de contato. Cada uma dessas atividades da função de ego (aprender, preencher e articular) caracteriza um tipo de ajustamento (autista, de preenchimento ou de articulação), o qual sempre depende do laço social para poder se efetivar. O surto, a sua vez, é o malogro social desses ajustamentos e a conseqüente emergência de um estado aflitivo, no qual o sistema self não encontra força para operar com os dados e com os próprios excitamentos, caso eles se apresentem. A função do terapeuta é assegurar direito de cidadania aos ajustamentos psicóticos produzidos pelos consulentes – estejam estes ou não em surto. Para tanto, os terapeutas devem poder promover o deslocamento seguro dos ajustamentos com menor poder de contratualidade para ajustamentos com maior aceitação social; o que de forma alguma se confunde com a eliminação dos ajustamentos psicóticos em proveito de um padrão de comportamento adaptado, freqüentemente neurótico. Trata-se, ao contrário, de apoiar o consulente para que este possa fazer valer seu modo de vida, seus ajustamentos psicóticos nos contextos nos quais se insere. De onde se segue a dimensão também “política” do trabalho terapêutico.


Referências

MÜLLER-GRANZOTTO, M.J. & R.L. Fenomenologia e Gestalt-terapia. SP: Summus, 2007.

PERLS, Frederick 1942. “Ego, fome e agressão”. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.

PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New York: Delta Book, 1965.Tradução utilizada: Gestalt-Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

ROBINE, Jean-Marie. 2004. S’apparaître à l’occasion d’un autre – Etudes pur la psychothérapie. Bordeaux: L’Exprimerie, 2004.